Nathália Souza M. De Oliveira - Psicóloga e Psicanalista -

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Falhas

“A família é a lacuna que nos sustenta.” Disse ele. “Lacuna?” Pergunto. Ele, confuso ao ouvir a estranheza do que disse, buscou a palavra que gostaria de ter dito, mas não a encontrou. Em vão, vão-se longos segundos e tentativas malsucedidas de aproximar-se do termo faltoso.  “Pilar”, “o que te segura”, arriscou, mas a falha em sua fala, seguida da falta da palavra que buscava, já estava exposta. Isso não podia se dar com aquele homem culto e bem-sucedido e o desconcertou numa pergunta: “O que é isso que está acontecendo comigo?”

Fora do consultório, o equívoco dele poderia ser condenado como erro, percebido como aleatoriedade sem valor e até mesmo ensejar escárnio. Esse é o modo como costumamos acomodar falhas, irracionalidades, isso que não reconhecemos como nós, parte de nós ou partindo de nós. Isso que muitas vezes parece estranho, estrangeiro e infamiliar. Isso que nos pega no pulo de um ato, fala ou pensamento. Isso que causa espanto e abala as precárias colunas que sustentam as inibições, sintomas e angústia a partir das insistentes lacunas que nos constituem.

Sofremos como modo de acomodar isso que está para além e aquém do que nós achamos que somos ou devemos ser. Para evitar falhar, fazemos um mal negócio, um contrato desvantajoso porque acabamos falhando de qualquer modo no resultado da transação e o pior é que ainda pagamos por isso com sofrimento.

A falha sintomática então produz um enigma sobre isso, uma pergunta sobre isso e uma fala sobre isso. Com uma escuta apropriada a fala dá um outro lugar para isso. Revemos o contrato, seus termos, seus custos, as letrinhas miúdas que nem notamos ao assinar anuência e o jogo com isso pode ser renegociado.

Encerrei a sessão daquele homem culto e bem-sucedido com o convite que faço aos leitores desta coluna.

Vamos falar mais sobre isso?

Déficit 

“Meu filho é TDAH.” Confidenciou-me o pai do menino no início do curso de Teatro. “Se ele causar qualquer transtorno, vou entender ele não poder ficar”. Fomos então à prática. Entre outras crianças da turma, Bruno não cumpria regras dadas, Felipe não se concentrava, Henrique não continha seus movimentos e Bento não parava de correr a esmo. Nenhum deles era o filho daquele homem.

A classificação diagnóstica de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) (DSM – 5, 2014) representa atualmente um dos principais fatores que incidem sobre a demanda de tratamento na clínica com crianças. Comumente são encaminhadas pela escola por razões ligadas a comportamentos impulsivos/agressivos e/ou rendimento insatisfatório, não raro, o diagnóstico é sugerido a partir da própria escola, já então familiarizada com esta classificação dos transtornos do neurodesenvolvimento consolidada também no campo da pedagogia.

Mais especificamente, a depressão e o TDAH se destacam entre outras “disorders” nos últimos 40 anos por protagonizarem a cena do sucesso terapêutico psicofarmacológico como resposta a incapacidade produtiva do sujeito, funcionando como motores que impulsionam a medicalização da vida. Em outras palavras, uma vez suposto no indivíduo o déficit de uma substância que responderia pelo bom desempenho de sua capacidade produtiva e adaptativa, deve-se acomodá-lo em uma nosografia diagnóstica que encerre nele o porquê de seu comportamento desviante.

O tema é vasto, espinhoso e cheio de atravessamentos de ordem política e econômica nos campos da saúde e da ciência. Por isso, me deterei ao aspecto subjetivo, ou seja, em como um diagnóstico psicológico pode ficar “malparado” na vida de uma pessoa, especialmente na infância.

Se por um lado o diagnóstico aplaca uma angústia por resposta e orientação, por outro, ele tende a aderir como identidade com todas as suas complexificações egóicas no jogo de reconhecimento que vão desde um vaticínio de incapacidade para a vida até objeto de desejo no mercado dos transtornos.

Que atire a primeira pedra aquele que nunca se perguntou se tem algum transtorno ou déficit de qualquer coisa. De maneira correlata, quem nunca cedeu à tentação de diagnosticar o próximo numa situação de desafeto? Adianto que dificilmente alguém escaparia ao alcance dos manuais tamanho requinte pormenorizado de classificações e conjugações de comorbidades contemplados.

Esse entendimento pretende reduzir o “problema” ao funcionamento bioquímico destituindo o sujeito de um saber-fazer com seu sintoma articulado ao mundo e às relações que sustentam o laço com a vida. E esta, sim, tem sido uma atual preocupação considerável na clínica: a fragilidade do laço com a vida.

Clinicamente, a narrativa hegemônica do “déficit” contribui para o empobrecimento dos recursos psíquicos de um sujeito por isentar os atores envolvidos na produção do sintoma e consequentemente desqualifica as iniciativas endereçadas a estes atores que poderiam constituir tratamentos bem-sucedidos, diversificados e singulares para além de uma medicação ou protocolo.

Nesse sentido, a escuta clínica se aproxima da prática teatral. O “material dourado” de ambas é justamente o desvio que nos humaniza, o transtorno que nos causa e o lugar dado a isso é oposto ao do silenciamento. Trata-se de um lugar construído pelo sujeito no jogo com o coletivo para levar à cena nossas mazelas, imperfeições, incompletudes e déficits produzindo um endereçamento do sofrimento à esfera pública e, isto sim, pode, eventualmente, causar transtornos ao entorno.

Assim foi com Bruno, Felipe, Henrique, Bento e, também, com o menino “TDAH”. Bruno não cumpria regras dadas, então inventou algumas para si próprio. Felipe não se concentrava, então passou a me alertar para a necessidade de intervalo. Henrique não continha seus movimentos e fez disso o estilo assumido de um personagem inquieto. Bento não parou de correr até algum aluno finalmente chutar sua bola imaginária e jogar um futebol mímico com ele. O menino, que fora dali era “TDAH”, no palco, era André. Não sem transtornos, as crianças decoraram texto, aprenderam marcas, compareceram aos ensaios e apresentaram um espetáculo para 450 pessoas, mas, sobretudo, elas protagonizaram a cena de suas vidas.

Verdade

“É mais fácil ser infeliz do que ser feliz.” A fala era de um sacerdote ancião que cerimoniava um casamento religioso. Suas palavras soaram um tanto indigestas para a ocasião e logo foram solenemente obliteradas pelos participantes que, descontes com o dito, acabaram por perdoar o deslize com facilidade atribuindo-o à idade avançada do sacerdote. A verdade comumente é tratada como um velho que diz coisas inconvenientes e na hora errada.

Esta e outras situações embaraçosas do cotidiano nos fazem pensar em como a verdade e a felicidade parecem compartilhar certa dose de dificuldade para estarem juntas na mesma cena. Cada qual ao seu turno, a verdade costuma conflitar com os recortes ideais que extraímos da realidade. Ela pode ser feia, cheirar mal, fazer ruído e torta de climão. Mas não é tão óbvio supor o mesmo mecanismo sobre a felicidade, coisa que, ao contrário da verdade, se almeja, se deseja e se busca voluntariamente. Então, como ser infeliz é mais fácil do que ser feliz?

Algum caminho podemos encontrar se reconhecemos no meio deste imbróglio a disposição psicológica um tanto automática para foracluir a dimensão problemática que a verdade pode trazer para a vida. Apesar da construção da ideia de felicidade ser diferente para cada sujeito, ela parece não contemplar o mal-estar que a verdade de cada um revela. Assim, inconscientemente, o caminho automático, mais fácil e mais curto seria não lhe dar ouvidos.

Porém, não são poucas as vezes em que a busca pela felicidade nestes termos, traduz-se, precisamente, no reconhecimento do sentimento de infelicidade. Clinicamente, subjaz nestes relatos notícias de verdades desconhecidas e diametralmente opostas à noção ideal de felicidade: ódio, trauma, insegurança, traição, melancolia, mesquinharia, inveja, agressividade e masoquismo em diversas conformações.   

Em mundo de facilitações tecnológicas propagadas mercadologicamente como objetos que carregam a promessa de felicidade assistimos ao crescimento assintótico dos estados generalizados de infelicidade. Também comparece nesta dimensão discursiva o mesmo mecanismo que precisa foracluir as muitas verdades trágicas e repugnantes do mundo e que influem nas nossas vidas para reduzir a felicidade à facilidade de consumir um objeto individualmente.

Se ser infeliz é mais fácil do que ser feliz, a felicidade parece, ironicamente, estar mais próxima da dificuldade que é acomodar a verdade na vida, do que, à princípio, da facilidade de ignorá-la.

Ao final da cerimônia busquei o sacerdote para cumprimentá-lo e elogiá-lo pelo corajoso sermão. Para minha surpresa aquele senhor pareceu tentar um flerte mais ou menos disfarçado de atenção generosa à moda antiga.  “O senhor está me cantando?”. Perguntei pelo bem da verdade. O ancião recuou um passo, virou-se e foi embora. É. A verdade também é comumente tratada como uma mulher que diz coisas inconvenientes e na hora errada.

Nathália Souza Martins de Oliveira
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